8 de setembro de 2008

Para ficar de mãos vazias



Os dias agora eram de um índigo. Algo da viscosidade tinha se diluído e por isso agora algo fluía. Não fácil como líquido, no entanto menos pegajoso. O ar seguia úmido, mas ao menos agora chovia, ao invés de estar tudo carregado em nuvens que densificassem a casa, a atmosfera, a rua, o corpo e o chão.


Era irônico o que se passara. Livrara com tanta avidez o pó dos móveis que, sem querer, operara um contrasenso: sobraram os móveis. Parcialmente desbotados, ficaram dessa cor dos dias, essa cor perdida entre o azul escuro e o preto. Um azul que perdeu a força, um preto que ainda não escureceu ao devido negro que pretendia ser. Se ao menos pudesse ter conservado a poeira... Mas não: perdera assim o encardido singular dos idos dias e ainda não chegara a cores vivas de madeiras estofados couros espumas metais plásticos que talvez ainda viessem a dotar a casa, a atmosfera, a rua, o corpo e o chão de suas vivacidades. O que havia era o úmido e o índigo. Não lamentava o acontecido, apenas sentia uma vertigem um pouco incômoda.


Foi conversar com Clarice na esperança de aprender a inventar o azul de mar pela manhã. Leu:
"Não, não, ela não estava perdida, ela ia mesmo fazer uma lista de coisas que podia fazer! Sentou-se diante do papel vazio e escreveu: comer - olhar as frutas da feira - ver cara de gente - ter amor - ter ódio - ter o que não se sabe e sentir um sofrimento intolerável - esperar o amado com impaciência - mar - entrar no mar - comprar um maiô novo - fazer café - olhar os objetos - ouvir música - mãos dadas - irritação - ter razão - não ter razão - não ter razão e sucumbir ao outro que reivindica - ser perdoada da vaidade de viver - ser mulher - dignificar-se - rir do absurdo de minha condiçao - não ter escolha - ter escolha - adormecer - mas de amor de corpo não falarei.
Depois dessa lista ela continuava a não saber quem ela era, mas sabia o número indefinido de coisas que podia fazer."






3 comentários:

cintilante disse...

clarice sempre aí pra nos clarear as idéias.

Anônimo disse...

dude!

carol de marchi disse...

rá!