28 de junho de 2007

de derrota, fez-se vitória.
e fez-se rio.
de frio, fez-se calor.
e fez-se frio - na barriga.
de dor de barriga, fez-se alívio.
e dor de cabeça.
de suavidade, fez-se rispidez.
e inconstância.

permutam-se, insistentes, festas e aflitos num redor-dentro.
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19 de junho de 2007

Conclusão

Ser bom em algo não é difícil.
Pode-se ser bom em costurar.
Pode-se ser bom em escrever.
Pode-se ser bom em escovar os dentes.
Pode-se ser bom em jogar futebol.
Pode-se ser bom em trabalho em equipe.
Pode-se ser bom em vinhos.
Pode-se ser bom em matemática.

Mas como já disse um sábio velho escabelado, tudo é relativo (à sua utilidade prática e a outras pessoas que não são tão boas em). E como já disse eu mesma (uma jovem escabelada e tantos outros), estamos orbitando numa galáxia falocrática, então a tendência é essa mesma: adorar e adornar o grande deus Ter ou o seu duplo, Ser. Mediocridade não interessa a ninguém! Só se for blasè, tipo o Bandini. Me agrada muito o Fante, mas não sou muito chegada nos blasè. E pra não vencer tem que ser com classe. Tem que fazer uma música bonita que nem a do Camelo. "Ah, cansei. Sou largadão e não ligo pros outros". Se não, tu é só um neurótico meia boca.

Então vamos nos orgulhar das nossas habilidades menos palpáveis.
Um viva ao charme!
Um viva à esperteza!
Um viva à facilidade em fazer bons trocadilhos!
Um viva à criatividade aplicada ao Orkut!
Um viva ao estilo!
Um viva à sorte!
Um viva ao improviso!
Um viva ao ecletismo!
Um viva às invenções quase imperceptíveis, tipo um novo jeito de dar laço no cadarço!

O negócio é ser bom sendo-se, mesmo que seja mau. E, no invisível, sorrir (intercalando com choro). Ser e Ter no unútil, só pra variar. E, com frequência, abandoná-los. Fazer-se irreconhecível.
Pratique o quase.

16 de junho de 2007

Pescaria IV

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O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.
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Italo Calvino - As Cidades invisíveis
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15 de junho de 2007

atrasada, como sempre

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Ô, lá em casa...
Correio bom é assim: a gente manda um telegrama no dia dos namorados e a encomenda chega na segunda-feira!
Delícia!
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blow it up

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Eu não sei se são as experiências com bancos que ando tendo, se é a má sorte em oficinas automobilísticas, se é o Foucault que eu ando lendo, se é a sensação da injustiça que teima em impregnar meus pensamentos desde o jogo do Grêmio. Claro está que meu espírito revolucionário está em ebulição. Meu lugar é de inconformidade, inquietação, raiva.
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Não me venham com gracinhas. Não me digam calma. Não me falem de palavras ternas. Não me sugiram suavidade. Não me evoquem prudência.
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Me convidem apenas aqueles que se aventurarem em uma experiência radical. Nada de bebedeiras e louqueadas ingênuas. Falo do radical. Algo subversivo. Algo que se faça e depois se saia dando uma risadinha sacana. Dirigido a uma pessoa, não. Não me refiro a mesquinhices. Quero máquina de guerra. Quero Che Guevara micropolitizado. Quero intervenção urbana. Quero Edukators. Nada de Piratas do Caribe.
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Sim. Estou no ponto para uma boa transgressão.
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14 de junho de 2007

Lançada a campanha


GRÊMIO, TRI: EU ACREDITO.
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7 de junho de 2007

Que caiam de Boca




Depois de passar pelo já mofado Santos de Pelé no jogo enfartante de quarta...





...enfrentaremos os pentacampeões na final.
Que caiam de Boca, atropelados por nós.
Que nosso fator caseiro faça diferença como nunca.
Que se prove que Carlos Eduardo es mucho mejor.
Que se dê o espetáculo.
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Que a festa seja nossa.

5 de junho de 2007

Acho que estou enlouquecendo


Despois de ficar meia hora na fila do Banco do Brasil para pagar uma multa, seguindo as orientações da estagiária do saguão da agência, chego no caixa e a senhora diz que não posso pagar ali. Só no Bansrisul. Ou depositar um cheque na conta que será descontado só amanhã de noite e, como quinta é feriado, só poderia pagar a conta na sexta. Já tinha passado das 16hs.

Expliquei pra mulher que eu tava há cinco dias nessa função e tinha seguido a orientação da mocinha do saguão. Ela riu, lamentou. Pois é. Próximo!


Saí da frente dela e, antes de sair do banco, berrei

VAI À PUTA QUE PARIU ESSA PORRA DESSE BANCO!!!


Nem sei que cara fizeram. Mas algumas pessoas devem ter gostado.

as voltas que se dá

existem muitas voltas que se pode dar:
a volta da ciranda, quando se é pequena
a volta por cima, quando se cai
a volta da curva, quando se quer desviar
a volta ao passado, quando se quer recuperar
a volta na cabeça, quando se perde a razão
a meia-volta, quando se quer retornar.

para dar qualquer uma, como eu já disse, deve se dar. dar foi e sempre será o mais difícil. e a gente é teimoso, teimoso demais quando insiste que não se pode mais dar e só receber. talvez um pouco preguiçoso também.

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tudo o que "descobri" lendo Freud na verdade eu já sabia.
tudo o que eu "descobri" lendo Foucault na verdade eu já sabia.
todo esse jogo de poder é o que nos deixa febris. a busca por ter algo ou ser algo ou pensar algo melhor do que algo outro. mal nos damos conta, mas é o que mais fazemos. no entanto, de alguma forma, tem um ponto em que a gente estanca. em que cedemos. e é como já me disseram: a gripe é um vírus e ataca milhões de pessoas. não tem muito o que fazer, a não ser esperar. estamos emaranhados no doentio jogo de poder. nada a fazer.

(ou seria melhor se tratar? pode-se tratar com médicos, médiuns ou música. nada, porém, garante uma cura da vontade de poder...)

como eu disse antes, contato é coisa para bichos, então melhor se tratar sozinhos. é como temos feito, sagazes sujeitos do contemporâneo. ficar e pedir tempo foram as duas invenções de maior sucesso das últimas décadas. tudo facilita o ficar sozinho. assim temos nossos PCs, blogs, telefones e TVs (a não ser que dê um curto circuito ou que algo se quebre, eles estão sempre ali pra ti!). e aí a gente finge estar curado. ô maravilha! voltamos ao belo império do estar bem. voltamos à paz do estar sozinho.

reparem bem, "voltamos". não é a mesma coisa que "dar a volta". mas quem se importa? dar é coisa de mulherzinha. e mulher já saiu de moda há muito tempo.

4 de junho de 2007

Garrafa de Cólera

Tu vai num show de uma banda independente (e portanto não paga um absurdo para as grandes gravadoras) e te param numa blitz na Salgado Filho. Aí tu pensa Mas na Salgado Filho não passam só ônibus? Exato, mas deixam o trânsito parado atrás de ti e te atrasam em nome de uma piada chamada segurança pública. Sim, porque motoristas sem documentos em dia e multas em dia e taxas em dia são um perigo à sociedade.

Aí te cobram o documento deste ano pois tu tens o vigente no ano passado. Aí tu pensa Poxa, mas eu já paguei o IPVA e ainda não chegou o meu documento em casa. Tu fala isso pros policiais, que não fazem a mínima idéia de como o DETRAN funciona e dizem que tu tem que atualizar isso o mais rápido possível.

Aí tu entra no site do DETRAN, afinal hoje em dia tudo é moderníssimo e automatizado. Mas não diz ali quanto tu deve exatamente. Ou melhor, diz, sim, mas todo aquele absurdo que tu paga há anos pra manter esse simples serviço completamente impessoal provavelmente foi gasto com o construtor de sites mais barato que encontraram. Aí tu liga pro número - pago - pra sanar tuas dúvidas, afinal tu quer cumprir as leis e pagar tuas contas. Te mandam ir a um caixa do banrisul, Que lá eles te dizem tudo o que tu tem que pagar. A atendente ri durante a ligação, pede desculpa, ela riu do colega dela e tu perdoa, pois afinal tu não pode achar que as pessoas tão rindo de ti assim, no mais. Elas são seres humanos como tu e têm o direito de rirem de seus colegas. Aliás, que bom saber que ela tá se divertindo no emprego, tu pensa.

Aí tu vai no Banrisul, tu tá com febre, mas hoje é teu último dia pra pagar o que tu deve - que ainda tu não sabe direito - no caixa. Ainda bem que eu não tô trabalhando, tu pensa, Pois senão eu não poderia vir no banco assim no meio da tarde no fantástico horário em que ele funciona em nome daquela piada que se chama segurança pública. Tu leva o documento de cobrança do teu IPVA e a confirmação de agendamento do pagamento do mesmo, pra mostrar que tu pagou. A caixa te explica que o pagamento fora apenas agendado, quem sabe tu não tinha saldo na tua conta no dia do agendamento. Aí te recomenda pagar o que deve hoje mesmo, já que o IPVA venceu e é acrescido de juros diários. Aí tu paga, mesmo sabendo que tu vai ter que pagar um terço do teu dinheiro no fim do mês pra tua terapia, mais sies restaurações porque tu tem cárie, mais o celular, mais a TV, mais a internet, mais o telefone, afinal tu não pode estar de fora destas tecnologias. Aí tu te lembra que aqueles filhos da puta da oficina que te cobraram oitocentos reais pra concertar meia dúzia de coisas ainda te devem uma peça sobre a qual tu pergunta todo santo dia e eles respondem que vão Comprar hoje mesmo, senhora, a gente te liga!

Aí tu sai do banco decidida a esclarecer isso no Banco do Brasil, afinal o que aconteceu com o agendamento que eu fiz? Ainda tem uma multa que de tantos juros tá custando quinhentos reais e consta no sistema da porra do DETRAN como vencida.

Aí tu, que economizou no fim de semana e gastou só com paracetamol, Sorinan e xarope (dando dinheiro pros grandes laboratórios porque tu não achou o remédio homeopático que tu queria ter comprado), resolve pegar um vídeo, já que o cinema é muito caro e tu não é velho nem estudante nem deficiente nem funcionário público nem assina Zero Hora pra ter descontos.

Aí já é segunda-feira e tu vai no Banco do Brasil e paga pra tirar um extrato de cada mês dos agendamentos e descobre que em um deles tu realmente não tinha saldo no dia e ninguém te avisou - como fazem quando teu pagamento do cartão de crédito não é efetuado (ah, sim, claro, mas aí o pagamento é rpa eles, do banco!). E aí tu olha o outro agendamento, aquele da multa, que inclusive tu recorreu na justiça mas perdeu, e tinha dinheiro na conta aquele dia, sim. E tem dois pagamentos no dia, menores, mas por algum motivo foi praqueles dois pagamentos que - sei lá eu quem, o robozinho dos débitos automáticos??? - do banco deu preferência. E, é claro, não te avisaram nada sobre a multa que não foi paga. Nem os merdas do DETRAN, nem os pau-no-cu do banco.

A responsabilidade é sua, senhora, de conferir se tinha saldo no dia. Claro, a responsabilidade sempre é nossa. Sujeitinhos nojentos vestidos de azul roubam até nossas calças, mas a responsabilidade é nossa. Alienados vestidos de cor-de-sarja carregam escopetas na Nilo Peçanha pra fazer uma "operação de rotina", mas a responsabilidade é nossa. O banco avisa até se tu tá na China sobre uma fatura de cartão atrasada. Tu paga pra agendar um pagamento. Tu paga pra conferir teu saldo. Tu paga pra acessar a internet. Tu paga pra poder ficar negativo na conta corrente. Tu paga pra habilitar teu cartão no exterior, mesmo que ele tenha vindo com o nomezinho International ali no canto. Mas ah, se tu não verificou, naquele dia, o teu saldo, mesmo que tu tenha estado de férias numa praia remota e sem um puto caixa automático, poxa, como tu não tinha então um laptop pra conferir e transferir dinheiro de uma conta corrente a outra, perante uma pequena taxa de cinco reais? A responsabilidade é tua.

Aí tu pergunta Bom, como eu faço pra conversar sobre essa preferência que foi dada pra duas outras contas que, essas sim, poderiam ter ficado penduradas? e o guri do saguão diz novamente Senhora, a responsabilidade é sua, eu só sou responsável por manter esta parte da agência funcionando. Bom, então vou falar com alguém lá dentro. Não, senhora, a senhora liga pro número 4001... Como assim, ligar? Eu estou aqui em carne e osso no banco e eu tenho que voltar pra casa e ligar??? Mas claro, hoje em dia até contas de celular tu só pode cancelar via telefone. Nada de presença. Isso assusta demais as pessoas. Isso é pra bichos. Eu lamento muito, mas não poso fazer nada. Óbvio.

Então tu fica puta. Tu fica puta porque tu tem que ligar pra porra da NET e cancelar a promoção que eles te dão, tendo que praticamente implorar pra moça parar de te enfiar os canais plus pela garganta, pelo simples fato que tu não tem poder aquisitivo pra isso. Tu fica puta porque a Claro te cobra a metade do preço dos minutos se tu tem um plano de conta, e não pré-pago. Tu fica puta porque tu só tem opção de ver Globo na TV aberta, se tu não tem NET. Tu fica puta porque tu tem que baixar o preço do teu apartamento pra poder vendê-lo. Tu fica puta porque é tua responsabilidade cuidar dos dentes pra não ter cárie e é tua responsabiildade pagar as multas e taxas do banco e é tua responsabilidade dirigir e estacionar corretíssimamente e é tua responsabilidade o que tu gasta em lazer e é tua responsabilidade declarar claramente tudo o que tu gasta e ganha e é tua responsabilidade pagar o Imposto de Renda.

E tu quer dirigir derrapando, tu tá morrendo de raiva e quer correr, mas tu não pode, senão leva multa. Então melhor ir pra casa. Gritar no teu apartamento, ó, privacidade do lar, mas tu não pode, porque também o condomínio pode te multar. Sim, te multa sem falar contigo, pois contato é coisa muito forte, lembra? Então melhor sair pra rua, mas como gritar no meio da rua? Não pode. Esse comportamento é anormal e tu pode ser multada ou mesmo levada pela polícia ou o que for para manter aquela piada que se chama segurança pública. Então melhor sair da cidade, vai com teu carro pra longe e grita o quento tu quiser! mas não pode, tem que pagar a baratíssima gasolina pra fazê-lo e tu lembrou que a porcaria do teu carro de merda tá na reserva de novo. Então tu pensa Melhor fazer terapia. Até tu lembrar que ela come um terço do teu orçamento. Melhor renunciar a si mesmo. Mlehor se tornar o que tudo mundo é: organizado e dentro da lei.

E não adianta. Tu acaba pagando área azul pra estacionar o carro e escolher as fotos da tua formatura, que também tu vai ter que pagar, comprando a pílula, pra não engravidar, e mais paracetamol, que a dor de cabeça agora tá insuportável.
Amanhã tu vai ter que pagar aquela multa de quinhentos reais pra não ter mais juros por cima dela. E mais xarope. E deixar de ir no show da banda independente, esse mês.


Mas não reclame de barriga cheia. Hoje em dia se pode tudo. As coisas estão muito mais fáceis com a tecnologia. Aliás, elas estão muito mais baratas e inclusive há uma tendência sendo observada por diversos teóricos dos saberes acerca do ser humano em direção a um certo misticismo e à humanização. O Real está forte. As informações, mais acessíveis. Você pode ser o que você quiser, desde que faça por merecer. Quem não consegue é por preguiça.
A vida no contemporâneo é cheia de possibilidades.
Sei.

1 de junho de 2007

Una ciutat I


Lá no fundo o trem ia-se.
Trazia-me, antes, ao primeiro plano.
E num zás-trás, ela ficou.
Eu me trouxe.
Záz, zi-zi-zi... tá!

Constipar

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Necessita-se de riqueza. Moedas, quem sabe-se lá. Especiarias de polietileno e poliamida.
Há de descosturar-se. Desentupir-se. Sentido de sonho.
Tupi. Literar-se. Mais Protuguês. Mais leitura. Mais envergadura. Mais bragança.
Uma opção pela léxica cultura e pela côncava saúde.
Uma porção de antissépticos e adstringentes para espectorar-se, advertir-se, adonizar-se.
Derrubar umas notas guardadas e umas prateleiras atrolhadas para sujar-se e limpar-se hipoalergenicamente.
Massa branca e massa cinzenta em alternância dulocrática. Fibrilação neuro-cardíaca.
Investigar-se, instigar-se, intrincar-se em imanantes imundícies inducorantes.
Indignar-se. Iodar-se.
Amidar-se em glúten. Acidular-se. Advir-se. Adivinhar-se.
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Quero outrar-me. Ser 100% algodão. Lavar à mão com água fria.
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Pescaria III

Agora, você está longe da margem: ah, sim, c0mo está longe da margem! Durante muito tempo, acreditou na existência da outra margem. Não é mais o caso. Contudo, você continua a nadar; cada movimento o aproxima mais do afogamento. Você não respira, os pulmões queimam. A água parece cada vez mais fria e, acima de tudo, amarga. Você não é mais um garotinho. Vai morrer agora. Não é nada. Estou aqui. Não i deixarei afundar. Continue a leitura.
Lembre-se, mais uma vez, de sua entrada no domínio da luta.
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Michel Houellebecq
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d(o)entes

Frio de cortar.
Fio pra cortar.
Fura feito faca, faz fiiiiiiii
e dá um ventinho feio.

Frio era ele,
forte,
firme,
fincando a agulha para o fluído a dor evitar.
Qual!
Fazia doer o não falar.

Nas paredes puramente brancas, fixei o olhar.
Fácil, foi quase dormir.
Palavra na ponta da língua,
dormente.

Finalmente
pude enxergar
que justo ali na frente
tinha uma cruz
e até mesmo eu, nem santa nem crente,
podia, quem sabe,
rezar.

Hoje fui no dentista mais uma vez. Tenho tudo que uma pessoa pode ter de problemas com dentes. Tudo bem, pensei, pelo menos não tenho crises de pânico nem músculos mal formados. Que fichinha essa de ter cárie! A risadinha interna se esgotou em seu cinismo quando ele me disse É, tem mais seis restaurações pra fazer.
Me desorganizo em dentistas, já mencionei antes. Sou o clichê das tiras de jornais. Não entendo quem tem medo de psicólogo.
Mas como um dentista é cheio de virtudes! O mesmo sujeito que me cravou de anestésico e apoiou seu pé na cadeira pra arrancar, entre discretos esguichos de sangue, depois de serrar em quatro o meu ciso, estava ali agora esculpindo com broca e resina as cavidades dos meus molares, numa demonstração de exímia motricidade fina e perfeccionismo. Impressionante. Eu não tinha medo dele antes de extrair meus cisos. Hoje não só o respeito, mas também sou fiasquenta.
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Depois de tentar me distrair daquele robô que te aponta a luz pra boca, olhando prum parafuso por vários minutos, reparei na janela e no céu azul. Pra completar meu papel em crônica do Luis Fernando Veríssimo, notei a igreja, único prédio visível pela janela. Olhei sua ponta aguda, cinza, e a cruz fincada no alto. Quase rezei. Mas não. Aquilo ali me lembrava demais uma broca.
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