3 de agosto de 2019

gramática aquática de uma partida

despontar de um porto que já não há
                                                           barca

deixar rolar águas re
                                 voltas 

em torno das ondas de um rio que abocanha
vir
    gula

abortar o nado que me leva
nada levar

lavar bem
tudo

colocar os pingos nos
                                    ir

Cine-poema


.
.

exploro imagens de arquivo
encontro os negativos dos nossos encontros
empilho-os caoticamente no canto do escuro dos olhos
esforço-me em remontar os detalhes


edito as cenas com acidez
pra não acabar em comédia romântica óbvia
(não o seria)
torço secretamente por um filme independente europeu
(seria charmoso)
pode ser que dê um documentário nacional sensível
(seria poético)


reenceno um clímax
há tensão e suspense
uma música surpreende
e dispara um cheiro
me acerta em cheio
obsceno
a pulsação dispara
quase me mata
escapamos vivos




é uma aventura doce-ardente
e o final é aberto

.
.

30 de setembro de 2017

Ladeira


saio de saia 
animada 
deságuo na rua    
abril                 

de cara
o vento esbofeteia a janela
fechou
amêndoas trágicas se jogaram nos capôs

no meio
aquela árvore já começou a chorar suas pitangas 
pisoteadas
agora na sarjeta
              
esquino
já meio que triste 
meio que nua
patética:

lamento não saber poemar tão dramática
tão poética
tão crua
quanto ela, a rua.

11 de junho de 2017

Desinerciação


Hoje eu vou forçar uma barra
Hoje eu vou cavoucar um hiato no existente

Hoje eu vou fazer um esforço maior
Hoje eu vou ser generosa com simplicidades

Hoje eu vou teimar mais
Hoje eu vou deliberadamente desperdiçar minutos de sono e de trabalho

Hoje eu vou arriscar
Hoje eu vou tirar ferramentas da última prateleira

Hoje eu vou, sim,
juro que vou.
Eu me prometo!

Por mais medíocre, 
por mais trêmulo,
por mais provisório que seja

Foda-se:
hoje eu vou fazer um poema.

5 de outubro de 2015

treino.

Vai, suporta aí.
Suporta a concentração, o foco.
Pra escrever, também pra muito mais.
Pra fazer aquela sequência de coisas que tu te propôs a fazer.
Suporta não distrair com a louça que ficou suja na pia e que o marido vai lavar só amanhã de manhã.
Suporta.
Suporta não olhar TV, não entrar nas maquininhas de fazer ver gente e se comunicar com gente.
Suporta a coceira da alergia. Não coça.
Suporta que tu não consegue tudo.
Que tu não vai ficar com o corpinho deuso que aquelas coitadas ficam se matando pra ter e suporta que sim, tu tá subjetivada nessa e que isso importa pra ti, sim, de um jeito incontrolável.
Suporta.
Que tu escreve vive milita aposta numa parada e que essa coisa te toma também, suporta a incoerência, a contradição.
Suporta que teu corpo não vai ficar como o da tua irmã gêmea, parâmetro inevitável, flagrante, de uma vida inteira.
Suporta o machismo que te ronda, e os limites de apontá-lo pra quem não suporta que seja apontado.
Suporta tua ansiedade.
Esses silêncios necessários.
Suporta não falar tudo pra todo mundo porque sabe que não suportariam.
A coceira de novo. Suporta.
Suporta a grana curta. A vontade de comer o chocolate na geladeira. O julgamento dos outros. O proibido. A vontade de fugir.
Suporta o ritmo. O que vão te dizer. A tentação da vitimização. Suporta ultrapassar os limites que os outros acham que tu tem.
Suporta mudar o verbo: sustenta.
Sustenta essa porra.
Sustenta teu desejo. Sustenta teu sofrimento. Sustenta a mulher que tu quer ser.
Sustenta.
Sim, é sustentar.
Sustenta a escrita. A experiência. A irregularidade. A vergonha. A contradição. A tua beleza. O teu talento. A incompletude do texto. O texto mal-acabado.
Sustenta-te a ti, sempre em vias de te acabar. Sustenta que quem coloca os teus limites é tu. Sustenta que tá tudo na tua cabeça. Sustenta que não importa o que os outros digam, receitem, achem que sabe de ti ou do teu processo. Não importa.
Sustenta tua imperfeição. Tuas cagadas. Teus fracassos.
Sustenta tua antipatia. Tua sinceridade. Teu não saber.
Tuas ancas. Tuas celulites. Teus músculos. O batom vermelho. A unha quebrada.
Sustenta teu sorriso. Tua espontaneidade. Teu mistério. Tuas coisas que não são acessíveis de primeira. Sustenta tua verruga e tua barriga.
Sustenta teu cheiro e tuas ideias.
Sustenta teu pensamento, teu pensamento, tua capacidade de produzir pensamento, mesmo que não interesse ao outro tua capacidade de produzir pensamento.
Sustenta tua capacidade de viver de muitas formas, de ser muitas.
Sustenta tua experiência.
Sustenta tua potência.
Sustenta, sustenta, sustenta.
Isso te dá músculo, e assim podes mudar de novo o verbo
Sei lá, quem sabe vira afirmar.
(Agora sustenta não revisar)

15 de agosto de 2015

Sentiu urgência de poema.
Rédea solta, passo louco, um qualquer de traço indomado.
“Lava, combustão”, a voz no palco cuspia.
E a guitarra feroz entrou em erupção.
Quis arrebentar palavra com a desenvoltura daquela música.
Daquela musa que cantava.

Mas como, se a pele era rocha fria?
Desesperou-se por chama.
Chamar por algo.
Incendiar.
Chamou socorro:
Poema!
Pôr marca.
Manchar algo.
Dançar no escuro. (Like no one is watching.)
Queimar no inferno. (Só de raiva.)
Gozar consigo. (Just for the sake of it.)

Não conseguiu esperar. Fechou o olho e poemou ali mesmo, sem nenhum pudor de si.


Poemou por tanto e com tanta coisa, tão ébria de som e de escuro, que depois só lembrou desse tiquinho. 
Foda-se. Já é um começo.

11 de abril de 2014

Pequena oração.


Ó deusa da inteligência, sei que é demais pedir um raciocínio mais rápido, uma facilidade imensa de escrita, um dicionário analógico implantado na minha cabeça. 



Dai-me então desprendimento e capacidade de botar o dedinho no foda-se com mais frequência. Obrigada. De nada.




21 de setembro de 2013

Desespero pouco é bobagem


Qual é mesmo a minha questão de doutorado?

Sobre o cuidado de si do militante de direitos humanos?

Sobre as novas formas de manifestação hoje?

Sobre uma determinada postura ética diante do mundo?

Sobre alegria e política?

Sobre os anarquismos e os marxismos?

Sobre tudo isso e nada?

Oh, céus.